Jean-Pierre Meunier
Jean-Pierre Meunier questiona as relações entre a imagem e o conhecimento. A resposta a esta questão depende do quadro de referência considerado na abordagem, no entanto, a reflexão assenta frequentemente sobre a oposição imagem/verbal, sendo aquela mais associada à afectividade, participação, proximidade, imediato, enquanto que o verbal aparece como mais reflexivo e distante.
A nível das pedagogias, considerada a polissemia da imagem, esta apelará a pedagogias não directivas, centradas na interpretação do destinatário.
Subsiste porém o problema do conhecimento antes e depois da exposição às imagens, levantando-se a questão da natureza das representações mentais que acolhem imagens exteriores e como estas se integram nas representações mentais.
Na visão estruturalista as línguas eram aceites como entidades autónomas susceptíveis de descrição independente. Com o desenvolvimento da pragmática reconhecem-se nos estudos da comunicação as conexões entre os diversos domínios – linguística, psicologia cognitiva, psicossociologia – assim como a inevitabilidade do recurso à enunciação e à relação em contexto e, naturalmente da semiótica cognitiva. Isto acontece porque quando se pretende compreender os processos de significação e as relações de comunicação não se pode ignorar o papel da representação mental, que se apresenta, assim, como uma nova variável a considerar no conjunto das actividades cognitivas.
Até numa definição básica de conhecimento encontramos a noção de representação. Conhecer é ter uma representação daquilo que se conhece.
É, pois, necessário clarificar a noção de representação. Os psicólogos da cognição reconhecem duas categorias de representação, proposicional e imagens, sendo manifesta a sua habitual preferência pelas proposições onde se inscreverá a maior parte das representações humanas. Esta ideia supõe que as representações humanas se organizam de forma semelhante à linguagem (língua) e que a estrutura da língua depende das representações cognitivas que lhe preexistem.
Já as representações figuradas caracterizam-se pela sua relação de analogia com a percepção.
Há também um número de trabalhos que atribuem às representações figuradas a superioridade na ordem das representações mentais. O próprio Piaget referindo-se a este assunto, enquanto fazia emergir o conceito verbal da imagem mental, reconhecia a esta uma função de ilustração do significado conceptual, uma categoria abstracta. Nesta perspectiva a palavra é o significante e a imagem é o signo que desempenha uma função coadjuvante.
Verifica-se, pois, na literatura que a separação entre imagem e conceito é frágil, fragilidade esta que as investigações actuais têm vindo a documentar: existe uma componente figurada no conceito lexical, ou usando a terminologia de Saussure, no significado do signo verbal. As palavras têm um valor figurativo, isto é, têm a capacidade de desencadear a formação duma imagem mental. Porém este processo coexiste com outros que não devem nada à imagem.
Por seu lado a teoria do acto elocutório defende que a enunciação verbal é a comunicação dum modelo mental de carácter icónico, sendo a linguagem um conjunto de instrumentos ao serviço da composição analógica. Nesta perspectiva, conhecer é ter uma representação icónica, isto é, uma imagem mais ou menos sensorial, mais ou menos abstracta de algo. Esta modelização levanta várias questões como por exemplo: níveis de abstracção dos modelos, que operações cognitivas autorizam as diferentes formas e graus de iconocidade, como se organizam os modelos entre si, questões estas que interessam tanto psicólogos como linguistas, como semiólogos.
Índice, ícone, símbolo
Esta problemática tem levado ao recurso cada vez mais frequente à categorização triádica peirciana, ícone-índice-símbolo. A hierarquia de Peirce tem além do mais a vantagem de se harmonizar com a hierarquia de representações em psicologia, utilizadas, nomeadamente por Piaget para descrever o desenvolvimento por etapas da função simbólica.
No plano da relação a correspondência entre as categorias peircianas e os pares princípio de prazer/princípio de realidade e imaginário simbólico põe em evidência uma progressão ontogénica entre o indicial e o icónico e o simbólico, aqueles ligados ao contacto e à relação comunitária e este ligado à linguagem.
Sendo a imagem o domínio da representação icónica que implica, pois as imagens mentais e materiais invadir o domínio da comunicação linguística torna-se difícil manter as características específicas dum campo e doutro sem transformar o linguístico em instrumento do icónico (tal como os estruturalistas já haviam feito no sentido inverso). Importante é, sobretudo, compreender os efeitos de mediação disponibilizados pelo linguístico, sendo através das palavras que as imagens se constituem em classes e também através das palavras se tornam possíveis operações mentais como a dedução. Se considerarmos que através da palavras as imagens se estruturam em classes , uma tal estruturação em que ícone e linguagem se interligam é uma estruturação complexa com vários níveis de abstracção e serve de suporte a operações cognitivas diversas incluindo as operações lógicas, espaço preferencial da linguagem)
Se se reconhecer a complexidade da imagem mental, uma nova questão se levanta: a da relação entre a imagem mental e as imagens materiais, na medida em que, inseridas num quadro de pensamento icónico complexo, perdem de certo modo a sua autonomia e é necessário estudar como se inserem nesse quadro.
As imagens originais (ou o mimetismo na origem das imagens)
Para Piaget a imagem assenta na imitação. Os jogos de imitação constituem uma forma primitiva de conhecimento, na medida em que supõem uma acomodação ao objecto. A imitação é reduzida a esboços motores que servirão de base à construção duma imagem mental:
- O conhecimento tem raízes na imitação (mimesis) como capacidade primitiva de reprodução corporal do mundo percebido, capacidade essa que dá origem à representação.
- A mimesis é um fenómeno complexo que comporta uma espécie de substituição/reprodução das diferentes partes do corpo.
- O mimetismo está presente tanto na recepção como na reprodução das imagens. Assim perceber uma imagem implica necessariamente uma retoma postural e motora das formas percebidas. Tanto os modelos mentais como as representações mentais ou materiais supõem processos de projecção-identificação múltiplos.
Ao contrário das imagens (modelos visuo-espaciais) os modelos mentais podem representar também entidades e relações de natureza não espacial que são, na verdade projecções-identificações que ligam o receptor às imagens através de várias modalidades perceptivas. Por exemplo, num modelo abstracto, atribuímos um determinado carácter estático ou dinâmico às entidades (fundo, manchas visuais, etc) segundo as intenções que o observador projecta sobre elas.
Lakoff propôs uma teoria do conhecimento com base na experiência do mundo construída a partir do corpo e da cultura e que diz que as nossas experiências corporais pré-conceptuais são a base de todas as nossas estruturas, incluindo as mais abstractas, distinguindo duas categorias de estruturas:
- Categorias de nível básico
- Imagens esquemáticas quinestésicas
Há assim categorias de base, como por exemplo conceitos como martelo, carro, etc, que pertencem a categorias sobreordinadas (ferramenta, viatura) e contêm subordinadas (martelo de carpinteiro, corsa). As categorias primordiais ou básicas são as primeiras percebidas pela criança, correspondem a formas (Gestalt) perceptivas, prestam-se a finalidades específicas e dão lugar a ricas imagens mentais. As imagens de base são aquelas mais próximas do corpo, da capacidade de se identificar
As imagens esquemáticas são estruturas simples prévias a qualquer outro conceito e dão sentido à experiência quotidiana: atrás/à frente, alto/baixo, etc.
O facto de se distinguirem níveis de base donde partem todos os outros dá suporte à construção do conhecimento como elaboração de imagens com níveis de complexidade variável.
A metáfora, intimamente ligada à imagem e à imaginação, é um aspecto essencial da conceptualização da experiência. Capacidade de conceptualização significa:
- Capacidade de formar estruturas simbólicas (conceitos de nível básico e imagens esquemáticas) que se relacionam com a nossa estrutura pré-conceptual.
- Capacidade de projectar estruturas do domínio físico no domínio abstracto
A imensa diversidade de pontos de vista é compreensível se pensarmos nas enormes possibilidades da língua na construção das imagens. As expressões linguísticas têm como função fazer o ajuste focal das coisas conceptualizadas. Em termos de ajuste focal, segundo Langacker, as palavras dividem-se em duas categorias de predicados nominais, designando as coisas, e relacionais respeitantes às interacções. A categoria relacional pode ser relativa ao processo ou a uma relação intemporal. A existência das diversas categorias linguísticas serve para dar conta dos destaques efectuados pela conceptualização de algo. Assim, encontramos em todos os níveis de conhecimento visto como representação icónica juízos quer sobre os modelos mentais abstractos quer sobre as imagens mentais simples, como se o conhecimento se confundisse com um juízo sobre algo. Construir o conhecimento sobre algo significa salientar um aspecto até aí desapercebido ou considerado marginal, e rever as interconexões a partir desse ponto de vista novo.
Portanto qualquer que seja o nível de abstracção do conhecimento ele procede dum enquadramento e ajustamento focal.
Assimilação, comparação, metaforização
Para Piaget a assimilação, isto é, a adaptação intelectual é a base da actividade cognitiva, e consiste em integrar o novo no já conhecido, isto é numa estrutura anterior quer relativa às experiências, quer a estruturas impostas pelas nossas rotinas interpretativas.
Portanto, os conceitos de comparação e assimilação implicam a compreensão duma coisa através de outra. Deste modo para salientar certos aspectos duma entidade são necessárias diversas comparações no interior dessa entidade e entre essa entidade e outras. A metaforização é, assim, um processo de conceptualização característico da vida mental que dá lugar aos níveis mais abstractos do conhecimento de Lakoff (lembremos que as categorias de base e as imagens esquemáticas eram as mais elementares)
Todavia, a comparação não se limita à projecção metafórica, estando também ligada à identificação ou contrário, diferenciação e esquematização.
A esquematicidade é a manifestação duma aptidão fundamental para a selecção e abstracção, necessariamente ligadas à assimilação e à comparação., noções estas interdependentes. Assim, as comparações entre imagens conceitos implicam a formação de conceitos mais esquemáticos e ainda redes esquemáticas de conceitos interligados e dizem respeito à organização do conhecimento em geral.
A esquematização é um produto da comparação tal como a extensão (assimilação a uma mesma categoria) e a metaforização (sobreposição parcial de categorias que permanecem diferenciadas). A esquematização implica uma actividade inferencial, isto é, busca das implicações decorrentes da interferência entre duas formas (Gestalt)
Se pedir a uma criança que desenhe uma flor ela fá-lo-á transferindo para o domínio gráfico os atributos da categoria cognitiva (caule, pétalas, etc.), mas se o objecto ocupar uma categoria marginal na categoria cognitiva ou não ocupar mesmo qualquer lugar (o que aconteceria se pedisse a uma criança que desenhasse um animal que ela nunca havia visto), as características da transposição não terão nada que ver com a construção mental típica, isto é não houve a construção dum esquema a partir duma categoria subordinada, mas sim provavelmente duma categoria superordinada (dum nível mais geral). Se a criança tiver que desenhar um galo e não conhecer um galo tenderá a desenhá-lo de acordo com a categoria animal (e poderá pôr-lhe as quatro patas que associa a essa categoria), isto é construíam um esquema a partir dessa categoria mais geral.
Aspectos do conhecimento ordinário
Do que atrás foi dito concluiremos que o conhecimento é uma vasta rede de imagens ou modelos ligados entre si por laços associativos fundados na semelhança e na contiguidade, sendo esta rede estruturada hierarquicamente a partir do nível de base enraizado na experiência corporal do mundo.
Para regular as nossas relações com o mundo dispomos de modelos mais ou menos esquemáticos que podem associar-se e especificar-se de acordo com as situações e problemas a resolver. Os esquemas e sub-esquemas que comportam os saberes da vida quotidiana são os mais estruturados, havendo porém zonas de conhecimento para as quais apenas dispomos de modelos pouco esquemáticos e pouco conectados entre si. Construímos esquemas progressivamente mais abrangentes e mais gerais, dependendo a riqueza dum esquema da diversidade de sub-esquemas que o potencialmente o integram.
Mas voltemos às zonas de saber que não se estruturaram através de aprendizagens sistemáticas ou muito afastadas da vida quotidiana, zonas consideravelmente desenvolvidas nos nossos dias graças à proliferação dos média. O alcance inferencial dos esquemas em domínios como a astrofísica, a biologia celular, etc, para a maior parte das pessoas, não assenta em esquemas básicos ou em saberes sistematizados, logo são esquemas pobres de sub-esquemas ou apenas contém aspectos muito parciais dos fenómenos. Há, efectivamente, uma projecção metafórica muito elementar próxima da experiência quotidiana em esquemas que salientam alguns aspectos periféricos, mascarando ou ignorando mesmo aspectos mais relevantes dos esquemas conceptuais desses domínios de saber mais afastados do conhecimento comum, num processo de “coisificação” das entidades que constituem esse esquema mais marginal.
Conclusão: Para uma semiótica cognitiva
A ideia esquemática duma iconicidade de pensamento resume-se brevemente em alguns pontos que se implicam mutuamente:
- O conhecimento começa com a representação mimética do real percebido, desenvolvendo-se através duma hierarquia de representações icónicas que vão desde as imagens ao alcance do corpo até aos modelos mentais cada vez mais abstractos, mas mesmo assim icónicos
- Toda a imagem ou modelo torna salientes uns aspectos da representação icónica enquanto oculta ou ignora outros.
- Na medida em que o conhecimento assenta sobre uma actividade de assimilação ou de comparação, ela procede necessariamente por metaforização e esquematização, sendo o conhecimento uma vasta rede de modelos esquemáticos mais ou menos encaixados e interligados uns com os outros
Que articulação há, pois, entre os signos externos e as imagens e modelos mentais, isto é as representações ou signos internos?
Os signos externos não são apenas meios de comunicação dos signos internos, mas também tecnologias da inteligência que alteram as operações do pensamento, havendo, assim, uma interdependência entre o domínio sócio-semiótico e o psicológico.
O papel fulcral do corpo na formação do pensamento suporta a ideia da iconicidade do pensamento. Além disso, o imaginário mental não precisará da capacidade lógica da linguagem verbal para exprimir certos conceitos, assim como a lógica não formalizará necessariamente as operações representativas. Se a linguagem serve a imagem mental, já que a traduz, também, por outro lado, transforma essa imagem mental.
Caberá, assim, à semiótica cognitiva estudar as transformações introduzidas pela palavra na imagem e vice-versa e as possibilidades cognitivas daí decorrentes.
Há apenas um modo de representar o mundo, o icónico, cuja acopulação com o sistema exterior de significantes desmultiplica as potencialidades de diferenciação, abstracção, etc.
É necessário definir claramente como os signos externos retroagem sobre a imagem mental e a sua diferenciação e organização, assim como o modo como as imagens materiais externas interagem com as internas.
Há, a este propósito, respostas antagónicas afirmando que as imagens externas provêm das imagens mentais ou, contrariamente que as imagens mentais resultam duma mentalização do percebido, considerando mentalização como o produto dum ajustamento focal.
E que dizer das imagens animadas que atestam a nossa capacidade de efectuar transformações mentais sobre o percebido?
As imagens esquemáticas como os diagramas são projecções no espaço exterior dos nossos modelos mentais provenientes da nossa aptidão não só para extrair esquemas das coisas e relações percebidas, mas também para criar esquemas com diversos níveis de abstracção.
A problemática da projecção do espaço interior no espaço exterior coloca grandes questões à semiótica cognitiva, nomeadamente a da elucidação sobre as aptidões cognitivas subjacentes à elaboração das imagens materiais e a da determinação da imagem mental pelas imagens materiais e o que influencia estas, a cultura e a técnica.
As imagens mentais e o discurso são traços reveladores da actividade cognitiva em cuja origem existem diferentes produções icónicas e aptid~es gerais, como a comparação, projecção metafórica, extracção de esquemas, diferentes modalidades de ajuste focal.
As imagens mentais com origem na interiorização do mundo exterior e as operações mentais sobre essas imagens conseguem especificar-se em imagens exteriores que são, por sua vez interiorizadas determinando em certa medida a imagem mental (ideia de circularidade). As imagens mentais de objectos externos característicos da nossa cultura e tradição enquadram a formação dos nossos modelos mentais. A cultura e a técnica produzem esquemas gerais transsubjectivos que são interiorizados pelos indivíduos, alterando a sua imagem individual específica. Assim interrogamo-nos sobre a medida em que a forma reticular da organização da informação com as novas tecnologias poderá reconfigurar a nossa imagem mental a nível de categorias e modelos e operações sobre os modelos.
O outro aspecto da imagem material é a questão das operações cognitivas solicitada pela percepção das imagens materiais e que, sendo mais próxima dos signos e da sua organização, é mais semiótica.
Há ainda outras questões específicas relativas aos discursos concretos que percorrem o tecido social com toda a espécie de representações individuais e colectivas. Estes discursos sociais são dispositivos igualmente cognitivos e de enunciação em cuja origem se encontram representações do mundo, corporizando as marcas de cultura colectiva transportadas por cada indivíduo.
No plano da recepção, por seu lado estes discursos são também objecto de elaboração pelo destinatário com a construção dum modelo mental mais ou menos correspondente ao do emissor e que reflecte a apreensão das intenções do destinatário.